“Para o longo curso está a emergir o hidrogénio verde”

Artigo APVE para o Jornal Economico - Out 2020

Os veículos elétricos são ajustados para o transporte citadino, enquanto para maiores distâncias e longo curso está a emergir o hidrogénio verde, afirma Teresa Ponce de Leão, presidente da Associação Portuguesa do Veículo Elétrico.

A evolução no sentido da eletrificação automóvel está a ser prejudicada pelo surto pandémico que ainda decorre?
Ainda é cedo para termos números credíveis e comparáveis, e não sabemos igualmente qual vai ser o ritmo da retoma. No entanto, há vários fenómenos que nos devem levar a refletir. Se, por um lado, a pandemia provocou uma diminuição da utilização dos transportes públicos – o tráfego na rede do Metro de Lisboa está atualmente nos 50% e no grande Porto os transportadores queixam-se do mesmo efeito – o grande desafio é voltar a chamar as pessoas para o transporte público, que terá que transmitir segurança. Neste período ocorreu um abrandamento enorme no comércio do setor automóvel mas, por outro lado, a venda de carros usados disparou. Segundo o Observatório INDICATA, a venda de carros usados disparou e Portugal lidera esse mercado na Europa. Ora, isto indicia mudança de comportamentos impulsionados pelo medo de usar transportes públicos. As bicicletas também tiveram uma muito maior procura neste período recente.

 

As campanhas a ilustrar a necessidade de mudança de mentalidade, no sentido da eletrificação automóvel, estão a ter resultados?
Vivemos um momento com muitas incertezas e é arriscado afirmarmos algo perentório. Quaisquer campanhas têm dificuldade de apresentar resultados facilmente quantificáveis usando apenas meios de sensibilização. A mudança de comportamentos faz-se porque as pessoas experimentam benefícios, ou no conforto, ou na redução de custos, ou no status que, no caso dos veículos elétricos (VE), é predominante, por enquanto. A este propósito há uma fábula de Esopo que me persegue desde miúda: “um homem caminhava com uma capa e os elementos da natureza – Sol e Vento – apostaram quem era mais forte. Veio o vento, soprou com a maior força que tinha mas o homem agarrou-se com toda a força à capa e não foi bem sucedido. Veio o sol, que começou a raiar com intensidade e sem mais, o homem despiu a capa”. Os comportamentos moldam-se à medida das necessidades e precisam perceber as vantagens.

Considera ser necessário acelerar a transformação nacional para a mobilidade elétrica? O que pode ser feito nesse sentido?
Há incentivos por parte do Governo. Já há soluções maduras para acomodar os VE aos pontos de carregamento públicos ou privados, os pontos de carregamento têm soluções tecnológicas amadurecidas, já foi criado um modelo de negócio e constituem um mercado à exceção do carregamento super rápido em corrente contínua. Neste ponto a APVE criou um Grupo de Trabalho para estudar o enquadramento legal e a regulamentação. Falta legislação e normas, problema que se estende a toda a Europa. Fruto do trabalho impulsionado pela APVE, está neste momento um documento publicado pela ERSE. A digitalização que está cada vez mais a permitir uma melhor gestão dos sistemas de energia é crucial para gerir os carregamentos garantindo que a oferta e a procura de energia se ajustam.

Deve o OE 2021 trazer incentivos nesse sentido? O que pode ser feito?
Mais que os incentivos são as medidas de política alinhadas com os objetivos que fazem falta. Um bom enquadramento legal que facilite o funcionamento do mercado tem mais efeito que um incentivo que nunca poderá ser de valor elevado. Vou dar um exemplo. Fala-se no meio dos automóveis, já há algum tempo, da necessidade de criar legislação para transformar os VCI (térmicos) em VE. Este mercado vai ao encontro do imposto pelo PNEC (Plano Nacional Energia e Clima 2030) no que respeita à Economia Circular, em vez de abater, recicla. Mas acontece que não há legislação nem regulamentação que permita legalizar esta atividade que, para além de ajudar na redução de resíduos, melhoraria o ar que as populações respiram e reduziria a despesa das autarquias no transporte de doentes e crianças para a escola. O conceito de Economia Circular deve estar presente no nosso dia a dia. Os processos e respetivas cadeias de valor devem ser avaliados em todas as suas etapas e só assim se podem comparar e qualificar com indicadores credíveis dos respetivos impactos. “Accountability” precisa-se.

Os problemas de carregamento elétrico e de autonomia das baterias estão globalmente ultrapassados?
Os VE, por enquanto, são particularmente ajustados a um transporte citadino num raio de poucas centenas de quilómetros. O LNEG tem três VE que servem perfeitamente as tarefas do dia a dia dentro de Lisboa e Porto. Não são adequados para as deslocações entre Porto, Lisboa e Aljustrel, para falar dos nossos campus. Para maiores distâncias e longo curso está a emergir um outro vetor energético, o hidrogénio verde (produzido a partir de fontes renováveis), que permite produzir VE com Fuel-cell com muito maior autonomia. Penso que será esta a tecnologia que estará disponível para descarbonizar os transportes que representam 25% das emissões poluentes.

 

Considera que o consumidor se sente tranquilo quando compra um veículo 100% elétrico?
Os VE têm vindo a afirmar-se como contribuintes para um conjunto de benefícios para a sociedade e para o ambiente que têm que ser percebidos. Na eficiência energética – podem ser três vezes mais eficientes que os veículos a combustão interna (VCI). Na segurança de abastecimento – o sistema de transporte tende a tornar-se menos dependente de importações e a diversificação de recursos torna-se realidade já que a eletricidade pode ser produzida a partir de diversas fontes renováveis locais. Na poluição do ar – sem emissões poluentes, os VE são particularmente benéficos para a circulação nas cidades onde os cidadãos estão expostos a emissões perniciosas para a saúde. Na redução de emissões com efeito de estufa – se alimentados a eletricidade verde. Adicionalmente, os VE que armazenam energia nas baterias podem oferecer serviços de flexibilidade ao sistema. No ruído – reduzem a poluição sonora. Na manutenção – os custos de manutenção, tendo em conta o reduzido número de peças móveis, o facto de não haver necessidade de mudanças de óleo, de adição do adblue, é muito mais baixo. No desenvolvimento industrial – facilitadores na redução de custos na tecnologia das baterias e fuel-cells que apresentam sinergias e são fatores chave na cadeia de valor para a competitividade industrial.

 

Que comentário faz sobre alguns estudos que indicam que o plug-in hybrid são tão ou mais poluentes do que os tradicionais veículos térmicos?
É tudo uma questão de análise de ciclo de vida. Qualquer produto tem que ser avaliado em toda a sua cadeia de valor. Materiais usados, como são recolhidos e transportados esses materiais, com são fabricados e como são usados. Todas estas etapas representam consumo de energia. Em todas as etapas a energia pode ser verde ou mais ou menos cinzenta. Na etapa de utilização também a eletricidade pode ser cinzenta pois depende da fonte ou mix de fontes que a produziu.

 

Devem os veículos plug-in hybrid sofrer restrições de circulação a prazo?
Pelo que disse atrás, devemos tender para uma economia descarbonizada onde só caberão os combustíveis limpos e os processos de produção sem resíduos e alimentados a energia verde. Todos os veículos terão que se adaptar as estes padrões, os plug-in hybrid não são exceção.

 

Em termos de tendência futura poderá um outro tipo de motorização, caso do hidrogénio e outras soluções, vir a ser uma alternativa aos veículos elétricos?
Como referi atrás, o hidrogénio, que terá de ser verde, será o vetor por excelência para o longo curso, transporte marítimo, caminho de ferro, aviação, e também será passível de exportação.

 

O tema das baterias em segundo ciclo de vida está a ser resolvido pelos fabricantes?
Já há empresas, e dou o exemplo da ZEEV, que têm preocupações de sustentabilidade sem prejudicar a rentabilidade e que conseguem fazer crescer o seu negócio inovando. Diversificar e aproveitar sinergias é uma forma de inovar, por exemplo combinando tecnologias afins como painéis fotovoltaicos e baterias. Ou investigando, como dar uma segunda vida às baterias usando-as como estacionárias, por exemplo, maximizando a produção das centrais solares fotovoltaicas, tornando-as mais estáveis e resilientes, ou nas habitações em complemento à produção própria, armazenando energia excedente para utilizar nas horas de não produção.

 

Não deve o tema da eletrificação chegar aos projetos de unidades fabris e aos projetos residenciais de forma a que não se torne um problema futuro a nível de saturação da rede de carregadores?
O exemplo que acabei de dar vai nesse sentido: usar a produção local para armazenamento local não havendo sequer necessidade de ligação à rede elétrica.

 

A capacidade de fornecimento de energia no país é suficiente para que todo o território possa ter veículos eletrificados?
Como já referi, o futuro passa por outros vetores para além da eletricidade, e mesmo esta forma de energia não precisa de ser obtida a partir do sistema central, a sua produção pode ser distribuída, local, e isolada do sistema. A Comissão Europeia acabou de apresentar a estratégia para o Sistema de Energia Europeu definindo-o como um sistema de sistemas e propondo como caminho a integração otimizada de sistemas (ESI), sistemas de energia que comunicam e que com a digitalização se otimizam globalmente. Um sistema em que o desenho dos mercados faz coincidir a procura com a produção ou vice-versa.

Fonte: https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/para-o-longo-curso-esta-a-emergir-o-hidrogenio-verde-642271

 

 

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